terça-feira, 17 de maio de 2011

Crónicas de Avis (III) - Vivi 3 dias numa povoação medieval














Já escrevi que Avis seria um ermo, sem pessoas nas ruas, com 4 ou 5 cafés com gente.


Enfim, impressões de quem chega, e, como sempre faço, venho para trabalhar para a comunidade, quero, por isso, viver nela. Daí passar, lá, dias, noites, fins de semana.


É o meu modo de vida, de ser profissional do trabalho social.


O "ermo" acabou este fim de semana.


Vivi, entre 13, 14 e 15 de Maio, dentro de uma vila medieval, com os comerciantes de pontos distantes, com os infanções, cavaleiros, plebeus, escravos, mouros e hereges, nobre e clérigos, numa inesquecível "Feira Medieval".


Por sorte, o sítio onde pernoito e trabalho era mesmo no coração da Feira e bastava sair da porta para entrar nesse mundo.


Vivi, durante 3 noites, num largo do Castelo cheio de gente e com muitas instituições locais (escolas, Associações, comerciantes), verdadeiramente envolvidas na sua animação. E que demonstravam gostar do que estavam a fazer, mesmo se significava algum sacrifício.


Encantei-me.


Porque a identidade, a cidadania e a participação me encantam e conduzem a minha vida, em qualquer local. Logo, no momento, em Avis. E entendi, penso, o que esta passagem, que acontece em episódios anuais, do "ermo" á vida intensa, significa.


E deixei-me ir no encanto.


Aceitei ter uma serpente ao pescoço, colocada pela sua adestradora, ver reconstituições de eventos medievos como justas, liças, espectáculos de malabaristas e (muito) comer e beber coisas de hoje "travestidas", com gosto, de algo daquele tempo.


Concelhos assim, cuja importância é anterior á nacionalidade, não têm de inventar um lugar na História de Portugal ou dar-se ao trabalho de "puxar os galões". Aqui o desafio é descobrir e rentabilizar o percurso feito, ao longo de toda a História e dele tirar as lições que, em cada época histórica, foram de identidade e pertença cidadã.


Ele existe.


A identidade pode estar adormecida, episódios políticos destes 40 anos podem ter levado do entusiasmo á desilusão, da extrema participação á desmobilização cidadã e cívica. Só quem viveu esse tempo o compreende.


Percebi que a identidade tem lugar(es) e vivi isso com muita emoção e entusiasmo.


Desta vez, em Avis.






segunda-feira, 2 de maio de 2011

Crónicas de Avis (II) - Estética e Mudança








A minha vida em Avis, quando lá estou, o que começa a ser, tendencialmente, todos os dias e alguns fins de semana, sendo de uma produtiva, mas solitária, azáfama profissional (exceptuando os bem vindos formadores e formandos e colaboradores da Cáritas, que frequentam o meu "ermitério"), proporciona, ainda, uma solitária reflexão sobre a Vida e, mesmo, a "minha" vida".




Homem de vícios públicos e virtudes privadas (exacto, não me enganei na formulação...), não escondo, nunca, o que sinto e aquilo porque opto, quando de modelos de mundo e de vida se trata.




No dia 1 de Maio, a Câmara de Avis organizou um excelente concerto, de homenagem ao poeta Ary dos Santos, que foi um belíssimo fim de tarde de poesia, música e, para mim, reflexão. Quer dizer que fui lá. Ouvir Samuel, acompanhado por excelentes convidadas e por um naipe de instrumentistas de excepção. Numa sala que teria, talvez, 5 dezenas de pessoas.




Quem me lê, ao que sei, conhece-me. Sou cidadão de Esquerda, membro activo da Igreja Católica até aos 32 anos, simpatizante e militante do PCP entre 1991 e 2000 , militante do Bloco de Esquerda entre 2001 e 2007, militante do PS desde 2009. Ou seja, sempre soube do lado em que estou : o da cidadania participada, inclusiva e solidária, mas igualitária. E sempre me "inscrevi", ou seja, "dei o nome", "vesti a camisola", tive "cartão". E essas adesões tiveram cargas enormes de afecto e muito pouco de razão estratégica (por isso foram tantas)....




Ontem, sentei-me para ouvir poemas, ditos e cantados, de um Poeta que ouço desde os meus 16 anos. Propûs a mim mesmo fazer uma coisa : ouvir bem as palavras de cada letra ou poema, para perceber porque razão sempre me emocionaram ou empolgaram, a mim, que, nem a tal, por militância, estava obrigado...




Concluí o seguinte : a poseia de Ary dos Santos, mais do que a de muitos seus contemporâneos, dá uma imensa dimensão estética aos afectos, sejam eles por pessoas, coisas ou causas; usa metáforas e outras imagens de beleza extrema para os descrever : "Minha laranja amarga e doce, meu poema ...", "De linho me vesti, de nardos me enfeitei(...)mas nunca te encontrei, nas estradas do que fiz", não serão os melhores eexemplos dessa estética dos afectos, mas lembrei-me dessas frases.




Mas em 1970 e seguintes anos, não era comum falar assumidamente de afectos, muito menos dar-lhes dimensão estética explícita. Percebi que muito do encanto que existiu na poesia de Ary dos Santos terá sido esse : afirmar a importância dos afectos e do assumir a beleza dos mesmos, nos processos de "mudança" ou "revolução" social . Falar deles, sejam, repito, por pessoas, coisas ou causas, como algo que dá vida e beleza àquilo a que muitos só vêm como um combate frio e duro por ideias.




Depois, Ary dos Santos também escreveu sobre os afectos pelas lutas aparentemente dele mais desprovidas : (Re)ouvi "As portas que Abril abriu", a "Sonata do trabalhador".




E ouvi, aqueles temas "pacíficos", mas carregados de um simbolismo afectuoso a roçar o "proibido" , por isso a chocar para que houvesse mudanças : "Desfolhada" e "Menina".



Descobri, também, que me emociono e sinto, coisa rara, uma coisas que correm cara abaixo e se chamam lágrimas. Senti-o ontem, naquele concerto.



Não eram lágriamas de nostalgia do tempo em que ouvia aquelas canções ou dos companheiros e companheiras que as trauteavam comigo. Eram de emoção e orgulho por ter tido a sorte de ter crescido num tempo tão rico, onde até havia gente que conseguia fazer da estética (e) dos afectos um instrumento de mudança social.



Posso viver a contar os cêntimos, a correr atrás do trabalho, estar, por vezes, mal com a vida, "pisar o risco", mas nesta nossa afectuosa geração, também sabemos, como dizia o poeta em causa "pegar o touro pelos cornos da desgraça e fazer da tristeza graça".

Por isso, repetindo o poeta, "Porque somos a diferença, que faz de todos iguais, é que não há quem nos vença, cada vez seremos mais."
A isto, não há crise que resista...