quarta-feira, 4 de abril de 2012

Deus, se morre, é por três dias...



Sobre o sentido social da morte de Jesus Cristo
Estes texto foi publicado, por mim, no Jornal "Açoriano Oriental", de Ponta Delgada, na longínqua Páscoa de de 1992; foi republicado no Jornal "Clarim", de Arruda dos Vinhos, na Páscoa de 2004.Hoje, recupero-o, 20 anos depois.
Porque é verdade.
Porque existe uma contra-natura (uma vez mais) aliança entre o Poder Político e o Poder Religioso.
Porque, em Avis, o Poder dos Corvos, dos "Sepulcros caidados de branco", feito "beatas", tudo exterminam e assassinam o trabalho social, vilipendiam o atendimento social, onde "corvos" assitem ao aco técnico de atender.
Porque hoje voltaria (ou voltei, porque já perdi tudo o que tinha a perder) a escrever o mesmo. Haja vergonha e seriedade !

" Não é novidade, para ninguém, a importância que o calendário judaico-cristão atribuiu á Páscoa. Embora por razões e factos diversos, essas duas grandes famílias religiosas fazem,desse tempo, ponto alto do seu ano.Gostaria de me reter sobre o facto que, para todos os cristãos, marca a Páscoa : a morte/ressurreição de Jesus. Quero fazê-lo como simples "leigo", ou seja, enquanto pessoa que acredita que, para além das leituras mais ou menos "místicas" e "sagradas", há um significado social, uma interpretação "civil" desse acontecimento, que é património de toda a Humanidade, do qual nenhuma Igreja institucionalizada é proprietária exclusiva.Há dias, ouvia num templo católico, um sacerdote afirmar que Jesus havia morrido por nós, para nos "resgatar". Tudo bem. Mas, para nos resgatar de quê ? Da morte, dirão alguns, pois deu-nos a vida eterna; do pecado, dirão outros, pois assumiu, sobre si, as culpas de todos nós. Perfeito ! Na catequese dominical aprende-se muito....Mas, para alguém que não tenha fé, que não acredite na vida eterna, que ache o pecado uma figura de retórica, que ensinamentos pode tira da morte de Jesus ? É aí que me quero deter, dando despretensioso contributo para uma interpretação "civil", social, da morte de Cristo.A morte de Jesus é a aniquilação do Eu.Explico-me :Jesus disse um dia "Eu sou a Vida"; quem tal afirma, não pode ter personalidade frágil, nem desejar a morte, nem escolhê-la, como um vulgar suicida. Nada nos Evangelhos permite pensar tal. Jesus apresenta-se como um homem determinado, que afronta o "establishment" da época. Por exemplo, uma vez a multidão pretendia precipitá-lo de um monte, , mas, segundo os Evangelhos, Jesus, muito naturalmente, "passou por entre eles e seguiu, sem ser molestado". Isto só pode ser feito por alguém de forte carácter.Assim, como primeira conclusão, resulta que Jesus era um Homem de forte personalidade.Passemos a um segundo aspecto. Um dia, Jesus afirmou: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me"."Negue-se a si mesmo". Que pode significar tal expressão ? O mesmo que muitos outros convites que fez : para "deixar tudo" e segui-lo, para "não olhar para trás, após ter deitado as mãos ao arado". Mas avancemos mais. S. Paulo fala, anos depois, do "Homem Novo", fruto da "morte" do Homem sem fé. O próprio Jesus já havia falado de "nascer de novo".Fica claro que, nesta acepção, a mudança, para a nova vida que Jesus trazia, se fazia pela negação da anterior, por um corte com a vida que, até aí, se fazia; ou seja, é condição, para a nova vida, que se deixe a antiga.Eis a segunda conclusão : teríamos de nos esvaziar de nós mesmos, para que, dentro de nós, algo nascesse de novo, diferente.Juntemos, agora, essas duas conclusões. Um homem, de forte personalidade, ensina os outros a esvaziarem-se de si mesmos. Paradoxalmente, parece que quer ser seguido por gente despersonalizada, que, voluntariamente, perdeu o carácter, para serem do seu "rebanho". Nada mais errado. A chave da interpretação do paradoxo é a morte de Jesus.Expliquemos: Jesus morre porque quer.No seu processo jurídico, teve várias "deixas" para evitar a condenação. Não o fez. Para cúmulo, já crucificado, acusa Deus Pai de o ter abandonado ("Meu Deus, porque me abandonastes ?").Eis a chave : Jesus, o tal homem de forte personalidade, considerando-se o Filho de Deus, experimenta a suprema negação de si mesmo, de todas as suas certezas, deixa "cair" todos os seus atributos por terra : já não é o líder de massas, o suposto "rei" dos Judeus, sequer o Messias, muito menos o filho querido de Deus. Experimenta a suprema aniquilação do seu "eu", deixa por terra aquilo que ele mesmo sabia ser.Que podemos concluir : o Cristianismo é o elogio da desporsanilação ? Não, não nos precipitemos.Jesus aniquilou o seu "eu", experimenta a "morte"; de tudo, mesmo das suas certezas. Mas, atenção, ressuscita, depois. Ou seja, reassume todo o seu ser, todo o seu "Eu", mas, digamos, já fortalecido, robustecido, consolidado, transformado pela experiência que foi perdê-lo.Então, que conclusão tirar ?Como religião de preceitos sociais, o Cristianismo é de vivência colectiva. O próprio Jesus havia dito "Onde dois ou mais estiverem juntos em meu nome, eu estarei no meio deles" (Mat.18:20). Ou seja, a morte, a aniquilação do nosso "Eu", só tem sentido se acontecer para que algo nasça de novo. mais robustecido. Jesus não diz "Onde um estiver em meu nome", mas, sim, têm de ser dois ou mais...; assim, só faz sentido que eu deixe "cair" a minha concepção de vida, a minha ideologia, a minha personalidade, se, daí resultar o surgimento de uma nova ideia de vida, uma nova forma de ver o mundo, uma personalidade nova.É este o sentido social da morte de Cristo : Não há personalidades, certezas, ideias, filosofias, que se possam considerar fortes se, continuamente, não estiverem dispostas a deixar-se "cair" a "negar-se", para que depois nasçam de novo, mais robustas e transformadas.Esta "negação" tem um profundo sentido social. Se eu, perante o outro com que me relaciono (em casa, no trabalho, na vida social e política, etc), me dispuser a perder a minha ideia (mesmo que a julgue a mais adequada), a minha concepção, a minha imagem, concerteza estou mais aberto a ouvir o outro, a considerar a sua opinião, a ver o positivo das suas propostas. E o outro, se estiver na mesma disposição de "negar-se a si mesmo", sem dúvida que, entre nós, no meio de nós, nascerá uma ideia mais perfeita, uma concepção mais aperfeiçoada, uma opinião mais consensual, uma maneira mais eficaz e eficiente de fazer face ao problema.Mas tudo começou porque alguém "morreu" para si mesmo...; mas fez isso não pelo prazer da dor e da "morte", ou para se "auto-flagelar" ou humilhar de forma masoquista, mas para, três dias depois, "ressuscitar" .E mudou o mundo e a vida de muitos.Por isso, faz sentido "morrer", mas para "nascer de novo".
Vila Franca do Campo (Açores), Páscoa de 1992

segunda-feira, 5 de março de 2012

Um estado de alma : A invenção do Amor

Transcrevo um poema lido na minha juventude, tinha 17 anos, nas licões liceais de Filosofia.
Hoje, recupero-o, porque me ajuda a perceber que a verdade das causas, sentimentos e afectos esbarra, sempre, com os "fariseus" do costume, portadores dos pensamentos mais conservadores da época.
Aqui entendo o Amor não como só a pessoas, mas a causas e valores, também.

A Invenção do Amor


Em todas as esquinas da cidade
Nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
Mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
Na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
No átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
Um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia
Um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel
Numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com caracter de urgência
Deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
E souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente
Unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo



Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
Colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia iminente a captura
A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam
Tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher conheceram-se, amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja tarde
E a memória da infância nos jardins escondidos acorde atolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha
E chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado
aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto
Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação


Mas é possível que haja outros
É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
De que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
O destino das máquinas das bombas de hidrogénio
Das normas de discriminação racial
O futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
A verdade incontroversa das declarações políticas


É possível que cantem mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeuque a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos
Água simples correndo
A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
Foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta


Procurem a mulher o homem que num bar de hotel
Se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
Senhas, salvo-condutos, horas de recolher, censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura, é preciso encontrar o casal fugitivo
Que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
Numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior
Uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua

Daniel Filipe (1925 - 1964)
"A Invenção do Amor e Outros Poemas", Lisboa, Presença, 1972

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Neste País, não há lugar para...


Este País não é para "piegas". Passos Coelho disse...; com uma imensa autoridade que lhe vem donde ?
Passos Coelho esteve com Viriato, nos Montes Hermínios, combatendo, durante 3 décadas, o magnífico exercito do Imperio Romano ?
Esteve em Covadonga e nas Asturias, no seculo 12, contra os recem chegados árabes ?
Esteve em 1383/1385, na "arraia miúda", em Lisboa, Atoleiros e Aljubarrota, a garantir..., como o seu sangue num exercito de voluntários, um Rei escolhido pelo Povo ?
Esteve, em 1640, em Avis, Ameixial ou Elvas, a defender esse mesmo desígnio?
Esteve, nos anos trinta do seculo XIX, junto dos progressista, no "Cerco do Porto", no combate de 24 de Agosto, no desembarque do Mindelo ?
Esteve, em 1914/1918, na mais cruel guerra do seculo XX (a dita 1ª Grande Guerra), onde milhares de portugueses foram massacrados sem sequer saber ao que iam, tal como na hedionda guerra colonial ?
Poucos se podem orgulhar de lá estarem; contudo, sabe-se lá porquê, estiveram. "Piegas" não eram...
Podemos ser acomodados, suspiciosos, pouco participativos, mas , quando chamados a agir nos momentos das grandes decisões, do "dar a vida", de "piegas" pouco temos (basta pensar nos Bombeiros Voluntários).
Vamos lá de corpo inteiro. Somos tendencialmente heróis, nunca "piegas".
Somos Portugueses. Com quase sete séculos de História, coisa rara na Europa.
Passos Coelho é que não nos merece. Mas temos de aturar cretinos !

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A Associação de Estudantes da Universidade de Évora, 35 anos depois


Um amável convite para a tomada de posse dos orgãos sociais da Academia que ajudei a fundar, em 1978, fez-me interromper este silêncio "bloguista".
Mas a causa é justa, e após um noite académica, onde pude explicar a alunos e categorizados docentes coisas "singelas", como ver nascer o sol por detrás da Igreja de S. Francisco, em Évora, comer uma bifana no Mercado, ou ver as Ruas de Évora (e a Cidade) a amanhecer, sem gente, mas a cheirar a lavado, deixo-vos com a entrevista que dei ao Jornal UEONLINE, como fundador da dita Associação.
Para memória futura de alguem que não se arrepende dos caminhos que faz.
E paga as consequências...

"PERGUNTAS
1) Em que ano entrou para a Universidade ?
O então Instituto Universitário de Évora (IUE) havia sido criado em 1973, mas, de facto, a actividade lectiva só se iniciaria em 1976/77.
Entretanto, eu e os cerca de 30 alunos que formaram as turmas de Economia e Sociologia, nesse ano lectivo, tinham transitado da Escola Superior de Estudos Económicos e Sociais “Bento de Jesus Caraça”, que existia em Évora, desde 1974, mas cujos alunos foram, após anunciada a sua progressiva extinção, integrados no então IUE, no 2º ano dos citados cursos.
Portanto, entrei para o Ensino Superior em 1975 (Setembro), mas tornei-me aluno da hoje Universidade, em Dezembro de 1976, ingressando, com mais 12 alunos, na Licenciatura em Sociologia, 2º ano, curso diurno.
2) Como era a Universidade desses tempos ?
Em Outubro de 1976, o então IUE tinha dois edifícios (a “Mitra” e um “corredor no Colégio do Espírito Santo – o restante edifício ainda era do Liceu de Évora). Teria , nesse seu início de vida lectiva, cerca de 50 alunos, dos quais mais de metade eram os tais “transferidos” da tal Escola Bento Caraça. “Economia” e “Sociologia” eram os dominantes com turmas diurnas e noturnas.
Não havia residências universitárias, muito menos refeitório (só aconteceu em 1979, julgo) e havia um minúsculo bar, aberto, esse sim, logo em início de 1977. Os nossos “luxos” eram a Reprografia e a Biblioteca.
Havia mais docentes e investigadores do que alunos. Não podemos esquecer que o então IUE acolheu inúmeros professores das Universidades de Angola e Moçambique, que entretanto se tinham tornado países independentes, assim como alguns (seleccionados…) professores da tal Escola Bento Caraça, mormente os ligados á Companhia de Jesus (jesuítas).
3) Como surgiu a ideia de criar a Associação de Estudantes ?
É uma história “épica”, que recordo com orgulho e emoção. Vivíamos tempo de afirmação do regime democrático (o “25 de Abril” tinha sido há menos de 4 anos…) e, a par das clivagens naturais (mais ideológicas que partidárias), havia m grande desejo de participar e confrontar ideias. Recordo, as clivagens eram sobretudo deológicas, ou seja, de visão do Mundo e da Vida.
Os alunos da Universidade de etão, tinham, de acordo com o regulamento da mesma, uma forma de participação a vida académica, através dos Delegados e Turma e de Curso, eleitos pelos alunos respectivos, que articipavam nas Comissões Pedagógicas de Curso, órgãos consultivos onde também inham assento os docentes.
Numa Escola Superior onde faltava aquilo que hoje é básico (refeitório, residências, apoio social em geral), sses temas foram, por diversas vezes, debatidos pelos ditos Delegados de Turma ou Curso. Muitos de nós (apesar de repito, haver poucos alunos), não nos conhecíamos e foi nesse ambiente de “Delegados” que foram surgindo “conversas” sobre a necessidade de termos uma Associação de Estudantes. Estaríamos em Outubro de 1977, se bem me recordo.
Foram feitas algumas iniciativas de “sensibilização”, como uma famosa “açorda”, servida por nós nos corredores do Colégio do Espírito Santo.
Num tempo de aprendizagem da Democracia, e ainda bem, tínhamos grandes preocupações em que as ideias saíssem das bases, ou seja, dos alunos. Aí os tais Delegados, até porque eleitos pelos alunos, sentiam-se com legitimidade para avançar na criação da Associação. Eu era um desses Delegados.
Assim, numa reunião para a qual foram convidados todos os Delegados, os presentes decidem convocar uma Reunião Geral de Alunos que, ao que me recordo, teve sessão inicial em Novembro de 1977. A ordem de trabalho era simples e concisa : analisar a situação social e académica dos alunos e decidir sobre como se organizarem. Eu, o João Pires, o Telmo Morna e a Olívia Ramos(julgo não estar a errar), fomos eleitos para ser a Mesa da RGA e eu para presidir aos trabalhos. A RGA foi longa, tendo várias sessões em vários dias.
4- Como foi o processo de implementação ?
Foi rápido e participado. Da dita RGA saiu uma decisão histórica : criar uma Associação de Estudantes. Mas, se havia que definir os objectivos, a missão e a vocação da futura Associação, os alunos deveriam, se bem o entendessem, apresentar projectos de estatutos, a serem votados em escrutínio secreto, e o projecto de estatutos vencedor seria aquele que seria objecto da escritura de constituição. Feita a escritura, então convocar-se-iam eleições para os corpos
sociais.
Eu, como moderador da dita Mesa da RGA “permanente”, fiquei encarregado de conduzir o processo.
Foram apresentados dois projectos de estatutos. A clivagem era evidente : um deles, em cuja redacção participei, era defendido por um abrangente leque de gente de “esquerda”, desde os próximos do PS até á então UDP, passando por pessoas como eu, da esquerda ligada aos meios católicos. Aqui “reinavam” os alunos de Sociologia e Economia. Apesar de ideologicamente conotados, só 2 tinham filiação partidária. O outro projecto era classificado, por nós, como o dos “conservadores”, que reunia claras simpatias junto da Reitoria, por ser tido como mais “moderado”.
O projecto vencedor foi o tido como o da “esquerda”, numa votação extremamente participada, precedida de vários e acesos debates, no seio da tal RGA “permanente”.
Fizemos a escritura em 23 de Maio de 1978.
Tenho orgulho de constar como um dos outorgantes.
5 – A Reitoria da altura apadrinhou e apoiou ?
Eram tempos diferentes.
O Reitor Ário Lobo de Azevedo encarou a derrota do projecto de estatutos defendido pelos ditos “conservadores” quase como uma ofensa pessoal. Quando, logo após a escritura, são feitas as primeiras eleições para os corpos sociais, esse grupo nem se candidata.
O “incómodo” da Reitoria era evidente e caricato : nos documentos oficiais da Universidade (Notas de Imprensa, etc), as nossas iniciativas eram difundidas como sendo de “um grupo de Alunos” e, nunca, da Associação de Estudantes. Chegou-se ao ponto de nos ter sido cedida uma Casa, na Rua de Machede (que foi a primeira Sede da associação), pela Reitoria, e no documento de cedência constavam os nomes de cada um de nós, como os “comodatários” e não o da Associação…
“Last but not de least”, os serviços jurídicos da Universidade solicitaram, ao Ministério Público, a extinção da Associação, por inconstitucionalidade dos estatutos! Por isso, em 29 de Janeiro de 1979, tivemos de fazer nova escritura, corrigindo a versão inicial dos Estatutos. Só a partir daí deixámos de ser um “grupo de alunos”.
Portanto, as relações foram sendo sempre tensas.
Éramos tolerados, mas activos e criativos.
7. Como Presidente da Associação, quais foram os primeiros projectos ?
Eu presidi á tal Mesa de RGA de onde saiu a criação da Associação.
Optámos, logo que foram eleitos os corpos sociais, por manter um funcionamento quase que em “plenário de órgãos sociais” : não havia um Presidente, mas uma direcção colectiva mas com responsabilidades divididas; havia um “Núcleo duro”, do qual eu participava, que tinha sempre 3 pessoas, no mínimo, que garantia as funções que estatutariamente cabiam ao Presidente, Vice-Presidente e Tesoureiro : era o António Brito e eu, cujas assinaturas obrigavam juridicamente a Associação, e conforme os assuntos e temas, juntava-se a Margarida Fortio, o Gazimba Simão, o João Barradas, o Mira Nunes, o Xico Sabino, entre outros que me recordo. Enfim, havia uma espécie de “troika” permanente, de composição variada, mas onde eu e o Brito tínhamos de estar, sempre.
Atendendo a que eu tinha fama de conciliador e era tido como pessoa moderada, no seio da Universidade, tornou-se hábito ser eu a ter as relações institucionais e representativas, internas e externas, mais “delicadas”. Daí, quer eu quer o Brito, termos fama de ter sido Presidentes, nome que, como era norma “progressista” da época, nunca nenhum de nós usou. A não ser por obrigação jurídica. Fui, por isso, digamos, um Presidente só por obrigação jurídica e estatutária, no 1º mandato.
Retomando a resposta, os nossos projectos iniciais, no primeiro mandato em que participei, o da fundação, tinham a ver com dar dignidade aos alunos e ao ensino.
Significou dar vida á Universidade, aproximá-la da Cidade, através de iniciativas culturais abrangentes; significou, numa Universidade sem refeitório e com um bar diminuto, termos, na nossa Sede, um Bar, onde até refeições chegaram a ser confeccionadas; chegamos a ter uma livraria e papelaria a funcionar na sede; depois, bater-nos pela qualidade do ensino, num tempo onde alguns cursos mais pareciam um “asilo” de docentes a aguardar a reforma…; sobretudo, como dizíamos, tornar a Universidade “habitável”, ou seja, promover espaços de convívio, encontro, reflexão, para que os alunos sentissem que a Universidade era sua.
Recordo coisas concretas como a Revista “Semente”, os Ciclos de Conferências sobre os temas quentes da época, os torneios desportivos, as recepções aos novos alunos, mas, sobretudo, o ambiente da Sede, verdadeiro refúgio e aconchego para todos nós, numa Universidade que tardava a perceber que os alunos eram a sua razão de existir.
8 – Quanto tempo esteve na Associação de Estudantes ?
Fiz dois mandatos, ou seja, desde a sua criação (Maio de 1978) até que, em Julho de 1980, me licenciei e, logo, deixei de poder ser eleito e ser sócio.
9 – Qual a maior recordação que guarda desses tempo de dirigente associativo ?
Guardo o prazer de ter aprendido como funciona a democracia participada e ter-me tornado adepto dela : eu era um católico (hoje já não sou) de esquerda (hoje ainda sou), sem filiação partidária, mas que se teve de habituar a conviver com todas as “tribos progressistas” da época, desde a esquerda mais radical, á mais social-democrata; aprendi a ser mediador, a construir consensos, mas a ser radical nas causas e convicções. Aprendi a respeitar a diferença, sem prescindir da minha maneira de estar. Aprendi que, no campo das convicções, é bom dormir com a consciência tranquila, mesmo se acordamos sabendo que perdemos algo (ou tudo).
Se tivesse de destacar um facto, recordaria que essa minha faceta conciliadora me fez ser sempre “indigitado”para escrever (e dizer) os discursos para os atos públicos onde íamos e, sobretudo, um episódio onde , numa sessão solene comemorativa do aniversário da Universidade, interpelei o Presidente da República, Ramalho Eanes, sobre porque estava a pactuar com uma cerimónia onde os representantes dos alunos não tinham lugar na mesa….
É evidente que paguei vários preços por tudo isso.
Toda a gente me augurava uma carreira brilhante na Universidade de Évora (fui um dos 3 primerios licenciados do meu Curso e o melhor aluno…), mas quem tinha o poder nunca me “perdoou” que eu, que até era “bom rapaz”, agisse como um “perigoso esquerdista”. E, sobretudo, que não mostrasse o mínimo de arrependimento…
A AE foi uma escola para muitos.
Recordo que desses tempos da Associação, saíram pessoas como o Pinto Sá (hoje Presidente da Câmara de Montemor), o Zé Carlos Zorrinho (que tem tido vários cargos governativos), entre outros.
9 – Que diferenças no Ensino Superior da altura e o atual ?
Hoje o ensino superior tem uma estrutura organizativa, científica e pedagógica totalmente diversa.
Eu tive 5 anos de licenciatura e só 6 anos depois fiz um Mestrado…; sou adepto do chamado “processo de Bolonha”. Desde que não se fique só pela forma, mas que se entenda a sua filosofia.
Na altura, encontrar saídas profissionais, não sendo fácil, era a consequência imediata de se ser “Dr” ou “Engenheiro”, que mais não fosse a dar aulas no ensino básico e secundário, Esta visão da Universidade como um sítio onde se encontrava a “enxada”, tende a ser substituída com o encarar da Escola Superior como um local de produção e difusão de conhecimento.
O que me agrada, embora tenha deixado a carreira docente á quase 10 anos.
O movimento associativo também espelha o tempo actual, de mudanças.
Uma Associação de Estudantes deixou de ser, em exclusivo, o “sindicato dos estudantes” , para ser um parceiro natural de todos os actores da comunidade académica, nas discussões e acções.
10- Lembra-se da primeira Queima das Fitas ?
Começo por uma “declaração de interesses” : sou contra as praxes e critico vários aspectos das chamadas tradições académicas vigentes.
Contudo, vejo as atuais “Queimas das Fitas” como uma semana de festa, perfeitamente compreensível , defensável e, até, saudável (pesem as “tradicionais e imponentes bebedeiras”, que , no meu tempo, também se apanhavam, mesmo sem “Queima”).
Combati, activamente, julgo que em Junho de 1980, uma tentativa de se fazer a primeira “bênção das pastas” e “queima das fitas”, na Universidade, patrocinada pela Reitoria e por um (aí sim !)“grupo de alunos”, que então nos contestavam.
Fui um daqueles que, para contrastar com aqueles que vestiam a “farda de estudante”, fui á cerimónia envolto num lençol branco. Isto porque era um tempo onde o ressuscitar da dita tradição tinha um cunho claramente conservador e revanchista.
Portanto, não participei, de forma “politicamente correcta” na primeira “Queima das Fitas”, a não ser desse modo contestatário.
Hoje, ainda não me arrependi.

Termino saudando os Corpos Sociais da Academia que ajudei a fundar.
É o maior orgulho da minha vida tê-lo feito.
Há quase 35 anos…
Honra aos fundadores que já cá não estão : o Brito e o Pires, e outros, talvez"