segunda-feira, 5 de março de 2012

Um estado de alma : A invenção do Amor

Transcrevo um poema lido na minha juventude, tinha 17 anos, nas licões liceais de Filosofia.
Hoje, recupero-o, porque me ajuda a perceber que a verdade das causas, sentimentos e afectos esbarra, sempre, com os "fariseus" do costume, portadores dos pensamentos mais conservadores da época.
Aqui entendo o Amor não como só a pessoas, mas a causas e valores, também.

A Invenção do Amor


Em todas as esquinas da cidade
Nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
Mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
Na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
No átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
Um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia
Um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel
Numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com caracter de urgência
Deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
E souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente
Unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo



Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
Colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia iminente a captura
A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam
Tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher conheceram-se, amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja tarde
E a memória da infância nos jardins escondidos acorde atolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha
E chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado
aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto
Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação


Mas é possível que haja outros
É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
De que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
O destino das máquinas das bombas de hidrogénio
Das normas de discriminação racial
O futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
A verdade incontroversa das declarações políticas


É possível que cantem mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeuque a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos
Água simples correndo
A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
Foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta


Procurem a mulher o homem que num bar de hotel
Se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
Senhas, salvo-condutos, horas de recolher, censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura, é preciso encontrar o casal fugitivo
Que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
Numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior
Uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua

Daniel Filipe (1925 - 1964)
"A Invenção do Amor e Outros Poemas", Lisboa, Presença, 1972

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