sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Sobre a pobreza, neste seu "Ano Europeu"





Respiguei um texto datado (2002) e localizado (Alentejo), mas que, ao voltar a consultá-lo, julgo ser útil ser colocado em comum (academismos à parte...).


CONTRIBUTOS PARA UMA CLARIFICAÇÃO SOBRE AS CARACTERÍSTICAS DA EXCLUSÃO SOCIAL NO DISTRITO DE ÉVORA *
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* Comunicação ao “Encontro de Chefes de Projecto de Luta Contara a Pobreza do Distrito de Évora ”
Abel Maria Simões Ribeiro
Docente do Instituto Superior de Serviço Social de Beja
Coordenador do Núcleo de Évora da REAPN


Resumo
O autor tenta situar as questões da exclusão e do seu combate num domínio simultaneamente subjectivo e objectivo: por um lado, existe uma percepção, perfeitamente mensurável, da exclusão, como o não usufruto de bens ou direitos; por outro, existe uma dimensão subjectiva, que não se situa no “excluído”, mas no discurso que a sociedade faz sobre o seu estatuto, que, por vezes, pode ser deveras relativo no que á realidade objectiva dessa exclusão respeita.
Conclui sobre a colocação das questões da exclusão, na única dicotomia que reconhece: conseguir ser-se (ou não) cidadão.

1. O que é lutar contra a exclusão ?

Há pelo menos 3 décadas que responsáveis pelos poderes, na Europa, assim como nas chamadas organizações da sociedade civil trabalham e lutam, organizados e apoiadas pelos chamados “dinheiros comunitários”, contra a pobreza ou contra a exclusão.
Contudo, se vos perguntar o que é a exclusão, dificilmente encontraremos um conceito consensual: a pobreza é algo que sabemos o que é, quase intuitivamente, mas que dificilmente conceptualizamos; a exclusão, talvez, ainda pior seja. Contudo, há muito (1993) que a própria União Europeia, através do então responsável pelo Programa Pobreza III, o Prof. Pierre Hierneux, adoptou um conceito, fundamental, para a exclusão, que me parece servir para todo e qualquer espaço do Mundo :

“A exclusão consiste na impossibilidade ou incapacidade, de uma pessoa ou grupo social, aceder e usufruir de um nível de vida e qualidade de vida médio do seu grupo social que, simultaneamente, corresponda às suas expectativas enquanto, consumidor, num determinado tempo e cultura global e local”

É um conceito muito operativo, talvez por vir de alguém que, ao mesmo tempo, é do “terreno” e da “ciência”.
Isto porque o centra, precisamente, não nas suas expressões e rostos (insuficiência de rendimentos, desqualificação, destruturação da família...), mas, precisamente, nos mecanismos de sua criação.
Penso ser este o equívoco, benévolo e bem intencionado de muitos dos chamados projectos de luta contra a exclusão/pobreza : lutamos contra as expressões, as consequências do incorrer na exclusão ou pobreza, e não contra os mecanismos que a criam; por isso abrimos infantários e creches, fazemos formação profissional, construímos curriculae escolares adequados a crianças diferentes, até tentamos “estruturar” as famílias. Tudo isto é meritório e útil, mas, sinceramente, não acredito que seja ser anti-pobreza e, muito menos, anti-exclusão; ainda é ser, teimosamente, assistencialista.
Por isso, não situo esta análise ao nível dos números valores ou dados estatísticos.
Julgo preferível tentar, convosco, encontrar pistas para a identificação dos mecanismos criadores da exclusão para, no desempenho profissional meritório que todos nós temos, os podermos, de facto combater. Isso mesmo, atacar os mecanismos...

2. A representação social do excluído no Alentejo
Vamos ser claros: o “excluído”, no discurso dos poderes, no Distrito, entre nós, tem muito pouco a ver com aquilo que Hierneux dizia.

Vejamos, só, um exemplo, que deixo á vossa reflexão e aprofundamento: todos, desde os Sindicatos, às Associações de Reformados, às Autarquias, falam das “pensões de miséria”, dos idosos, como o grupo social (“de referência”), mais pobre. Se tivermos uma lógica de análise do rendimento distribuído, será verdade. Agora, pergunto-vos, aqueles e aquelas que casaram há pouco tempo, ou que baptizaram um filho: quem deu a prenda mais valiosa? Os Pais ou os Avós ? Mais, a quem recorremos, nas alturas de “apertos económicos” (para dar a entrada para a casa ou o carro...): ao Pai urbano, com profissão bem definida, ou ao Avô ou Avó, o tal das “pensões de miséria” ? Deixo-vos esta perplexidade...
De facto, temos uma representação da condição de exclusão ou, mesmo, da pobreza que, de facto, se baseia muito no lugar comum e não naquilo que Hierneux dizia.
Talvez, por isso, insista que só conhecendo os mecanismos de criação, aqueles que incapacitam ou impossibilitam de ter acesso ao tal nível de vida e qualidade de vida, o médio e o desejado (e por isso excluem) , podemos de facto conhecer o fenómeno.

3. Algumas pistas para conhecer os mecanismos de criação da exclusão no nosso Distrito

Julgo que, hoje, o que mais conhecemos e nos assusta, cada vez mais, não é a exclusão ou a pobreza, mas a precariedade, que é, claramente, a sua antecâmara.
De facto, os mecanismos de criação de exclusão ou pobreza são, antes de mais, nos seus primórdios, geradores de precariedade.
Na verdade, sentimos a precariedade porque as colunas fundadoras da “segurança” do nosso modelo civilizacional estão, progressivamente, a deixar de ser o “ancoradouro” dos “barcos”, que são os movimentos sociais, nos quais nós “navegamos”.
Senão vejamos:
. A família deixou de ser extensa, unilocal e para toda a vida: muitos de nós não vivemos na terra dos nossos pais ou avós, alguns de nós já casámos mais de uma vez e outros, seguramente, irão fazê-lo. A crise da representação civilizacional de família é, ao mesmo tempo, a substituição das referências “do sangue” por outros mecanismos de pertença;
. O trabalho, há muito, deixou de ser para toda a vida e de depender de qualificações ou especializações; quantos de nós, antes de termos acesso a profissões ligadas ás nossas qualificações, não tivemos de experimentar outras ...?
Poderia falar de outras “colunas”, mas fiquemos por aqui...
De facto, a precariedade tem a ver com o sentido de insegurança que fomos criando, porque essas “colunas” não foram substituídas por outras.
Mais : o modo ultraperiférico como assumimos a nossa integração nos grandes espaços da globalização e da mundialização, fizeram-nos colocar, sempre em instâncias abstractas e fora de nós (como a União Europeia ou, mesmo, o IEFP ou a Segurança Social), a resolução dos nossos destinos, logo, as nossas novas seguranças agora virtuais.
Mais: o modo como assumimos os modelos culturais anexos a esse processo ou o modo como os recusamos, fizeram-nos descrer em nós mesmos e na validade das relações que estabelecemos uns com os outros: recordo, só, o discurso de exaltação do sucesso e da competitividade dos bem-sucedidos, o discurso de “alguém tem de me resolver o problema porque sou vítima o sistema”, vindo dos mal sucedidos”, as relações humanas “de plástico” dos “realty shows”, a redescoberta e moda dos lugares comuns de linguagem.
O nosso problema é precisamente esse: combatemos a precariedade, logo, a exclusão, sabendo, sem o confessar, que de facto não o estamos a fazer, porque estamos, somente, a evitar que a escola básica da aldeia não feche (mas no próximo ano fechará), que só 1/3 das formandas do curso de agentes de geriatria irão exercer a função, que a IPSS, que é nossa parceira, de solidariedade tem muito pouco. No fundo, intuímos tudo isso, mas não o confessamos: intuímos que o mecanismo fundamental de geração da precariedade é cultural e, depois, é de projecto de vida. Os males económicos do neo-liberalismo simplesmente os agravam...
Então, porque existe a precariedade, no nosso Distrito, a tal que conduz á exclusão e, por vezes, á pobreza ? Todos o sabemos...
Antes de mais, porque há mais de 500 anos que nos iludem e mentem e, ao fazê-lo, nos privam da capacidade de construir um projecto de vida pessoal e de sociedade:
. Porque nos prometeram sempre “amanhãs que cantam”, esquecendo-se que teríamos de ser nós a fazê-los cantar e não a esperar que outros o fizessem;
. Porque nos interiorizaram um discurso de miséria, dizendo que somos pobres, poucos e pequenos e que, só exibindo publicamente tal miséria e pessimismo, teríamos a atenção dos poderes; quantos deputados, autarcas e dirigentes de organizações, ao longo da história, tiveram dificuldade em esconder o agrado que, por isso, lhe causaram os números do desemprego, do envelhecimento e da desertificação;
. Porque colocaram sempre fora de nós e das nossas capacidades a resolução dos nossos problemas, atribuindo-a a grandes obras e iniciativas que, passarão, sempre, ao nosso lado;
. Porque nos ensinaram, ao longo de todos este tempo, que a cidade e o urbano é que era bom e que tudo o que era escala pequena era símbolo de miséria.

Em suma, a verdadeira causa da nossa precariedade é a castração histórica da consciência cidadã que nos privou de nós mesmos.
Poderá estar aqui a chave da compreensão dos mecanismos de criação da tal propalada “pobreza estrutural do Alentejo” e dos seus “rostos oficiais”.

4. Então, que fazer?

Sejamos um pouco optimistas.
É possível combater estes mecanismos criadores de exclusão, entre nós. Só que isso implica que lutar contra a exclusão seja, antes de mais, uma atitude cívica que tenha os seguintes limites:
. A construção, a nível da pessoa, antes de mais, de projectos individuais de vida (e não só de projectos familiares ou profissionais) que permitam o descobrir novas pertenças e vinculações identitárias, construindo uma consciência cidadã;
. A construção, a nível local e regional, de dinâmicas de redescoberta de recursos, que, apropriados pelos cidadãos, sejam geradores de riquezas que são produzidas geridas e partilhadas pelos habitantes;
. A construção, a nível das representações colectivas, da ideia que não está na nossa mão acabar com os rostos/problemas da pobreza, mas está na nossa mão construir as condições locais para que eles não nos afectem.
É evidente que isto implica outros discursos de política social, outras posturas profissionais o outras instituições.
Talvez, por isso, outro dos nossos grandes problemas seja este: queremos combater a exclusão, muitas vezes animados de um discurso inovador e que “vai ao fundo” da questão, mas com instituições com práticas e gestão ainda medieval. Não posso deixar de sorrir quando vejo pessoas como o Padre Maia ou o Padre Melícias a falar de “economia social”: de facto, eles referem-se é á ”economia do social”; ou quando vejo o desprezo institucional a que está votado um documento orientador como o Plano Nacional de Acção para a Inclusão.
Daí que o nosso desafio, neste início de século seja grande e radical: nunca erradicaremos a exclusão e muito menos pobreza, pois ela é regra dos sistemas; está, sim, nas nossa mãos construir sociedades inclusivas, dentro do modelo económico-político infelizmente dominante, e isso passa por:
. Construir a consciência da participação cidadã
. Construir, localmente e articuladamente, processos duráveis de
desenvolvimento.

“A pobreza nasce dentro de nós. Na falta de crença em nós mesmos. Na falta de fé nos outros e no modo como eles nos olham. Na excessiva confiança na dependência dos poderosos. Na descrença absoluta que as transformações históricas são, antes de mais, estados de paixão que rebentam no íntimo de cada um, e, só por isso, incendeiam a sociedade.”
Francesco Alberoni



Viana do Alentejo, 18 de Junho de 2002

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